NARRAÇÃO DE UMA DONZELLA. N'este monte mais alto de todos (que eu vim buscar, pola suavidade differente dos outros, que n'elle achei) passava eu a minha vida, como podia, ora em me ir pelos fundos valles, que o cingem derredor; ora em me pôr, do mais alto d'elle, olhar a terra como ia acabar ao mar: e depois o mar como se estendia logo após ella, pera * acabar onde o ninguem visse. Mas quando vinha a noite, accepta a meus pensamentos, que via as aves buscarem seus pousos, umas chamarem as outras, parecendo que queria assossegar a terra mesma, então eu triste, com os cuidados dobrados com que amanhecia, me recolhia pera a minha pobre casa (onde Deus me é boa testimunha de como as noites dormia). Assi passava eu o tempo; quando uma das passadas, pouco ha, levantando-me eu, vi a menha como se erguia fermosa, e se estendia graciosamente per entre os valles; e deixar, indo, os altos: ca ** o sol, ja levantado thé os peitos, vinha tomando posse dos outeiros; como quem se queria senhorear da terra. As doces aves, batendo as azas, andavam buscando umas ás outras: os pastores tangendo as suas frautas, e rodeados de seus gados, começavam asscmar pelas cumiadas. Pera todos parecia que vinha aquelle dia assi ledo: os meus cuidados sos, vendo como vinha seu contrário (ao parecer poderoso) recolhiam-se a mi*, pondo-me ante os meus olhos, pera quanto prazer e contentamento podera aquelle dia vir, senão fôra tudo tam mudado; d'onde o que fazia alegre a todas as cousas, a mi so teve causa de fazer triste. E como os meus cuidados, pera o que tinha a ventura ordenado, me começassem d'entrar pela lembrança de algum tempo que foi, e que nunca fôra; senhorearam-se assi de mi, que me não podia ja soffrer a par de minha casa; e desejava ir-me per logares sos onde desabafasse em suspirar. E inda bem não foi alto dia, quando eu (parece que acinte) determinei ir-me pera o pe d'este monte, que d'arvoredos grandes, e verdes hervas, e deleitosas sombras é cheio: per onde corre um pequeno ribeiro de água de todo o anno que, nas noites caladas, o rugido d'elle faz, no mais alto d'este monte, um saudoso tom, que muitas vezes me tolhe o somno : onde outras muitas vou eu lavar minhas lagrymas; e onde muitas infinitas as torno a beber. Começava então de querer cahir a calma; e no caminho com a pressa, por fugir d'ella, ou pola desaventura, que me levava a mi, tres ou quatro vezes caí alli : mas eu (que depois de triste cuidei que não tinha mais que temer) nem olhei nada por aquello*, em que parece que Deus me queria avisar da mudança, que depois havia de vir. Chegando á borda do rio, olhei pera onde havia melhores sombras: pareceram-m'o as que stavam além do rio: disse então que n'aquello se enxergava que era desejado tudo o que com mais trabalho se podia haver; porque não se podia ir álém sem se passar a água, que corria alli mansa, e mais alta que na outra parte. Mas eu (que sempre folguei de buscar meu damno) passei álèm; e fui-me assentar de sob a spessa sombra de um verde freixo, que pera baixo um pouco stava: algumas das ramas estendia per cima d'água, que alli fazia tamalavez ** de corrente; e impedida de um penedo, que no meio d'ella stava, se partia pera um e outro cabo murmurando: eu, que os olhos levava alli postos, comecei a cuidar que tambem nas cousas, que não tinham intendimento, havia fazerem-se nojo umas ás outras. Stava d'alli aprendendo tomar algum conforto no meu mal: que assi aquelle penedo stava enojando aquella água, que queria ir seu caminho (como minhas desaventuras de outro tempo soíam fazer a tudo o que eu mais queria, que ja agora não quero nada) e crescia-me d'aquello um pezar. Porque, a cabo do penedo, tornava a água a junctar-se e ir seu caminho, sem estrondo algum; mas antes parecia que corria alli mais depressa, que pela ou tra parte: e dizia eu que sería aquello por se apar tar mais asinha d'aquelle penedo imigo de seu curso natural que, como per fôrça, alli stava. Não tardou muito que, stando eu assi cuidando, sôbre um verde ramo que per cima da água se estendia, se veio pousar um roussinol : começou a cantar tam docemente, que de todo me levou após si o meu sentido d'ouvir; e elle cada vez crescia mais em seus queixumes, que parecia que, como cançado, queria acabar; senão quando tornava, como que começava, então (triste da avesinha) que stando se assi queixando, não sei como, se cahiu morta sôbre aquella água; e, cahindo per entre as ramas, muitas folhas cahiram tambem com ella: pareceu aquello signal de pezar n'aquelle arvoredo de caso tam desastrado. Levava após si a água, e as folhas após ella; e quizera-a eu ir tomar : mas pola corrente que alli fazia, e polo matto, que d'alli pera baixo acerca do rio logo stava, prestesmente se alongou da vista. O coração me doeu tanto então em ver tam asinha morto, quem d'antes tam pouco havia que vira star cantando, que não pude ter as iagrymas. O QUE SUCCEDEU A AVALOR, EMBARCANDO-SE EM UM BARCO. Parece que a sua desventura (de Avalor, que assi the chamava eu) deu com elle pera aquella |