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Vireis posta nessa altura

Que em vós não ha cousa igual,

Que nem a maior mal

Podeis vir, nem mor baixeza
Que serdes meu natural.

Porisso não confesseis
Serdes meu, que he desatino
Com que o lugar perdereis:
Se conservar-vos quereis,
Blasonai que sois divino.
Que se nesta occasião
Conhecessem que ereis meu
Por meu vos derão de mão

Foreis mofino como eu.

XXV

Era o Poeta no trato agradavel, alegre e engraçadó, como attestam algumas de suas poesias escriptas a damas e amigos; mas esta alegria começou a perder na India, nos ultimos tempos que ali militou, entregando-se á melancholia, sentimento que se apoderou de todo d'elle na sua volta para o reino. Dos seus habitos pouco podemos dizer, nem tratariamos de certas miudezas que só interessam quando dizem respeito aos grandes homens, se não contassemos como predecessores n'estas minuciosas narrativas homens os mais abalisados. Suetonio nos diz que Cesar era molestado dos callos, e Horacio nos diz de si que soffria dos olhos, e seu amigo Virgilio do estomago; o Manso e Chateaubriand não omittiram cousas da mesma natureza nas suas biographias, o primeiro do Tasso, e o segundo de Milton.

Não podemos dizer se, como o Tasso, o Poeta trajava sempre de negro, ou como Milton de panno grosso e alvadio, antes pelo contrario nos parece que na sua mocidade fôra cuidadoso no seu vestuario; o Poeta galanteador das damas, como todos os que por ahi passaram, sabia que apreço aos olhos d'ellas tem um vestuario elegante e fastuoso. Nas suas poesias se encontra um pequeno poema, em que recòrda a um fidalgo de uma maneira graciosa e delicada a promessa que lhe

havia feito de uma camiza; objecto do vestuario do homem, n'aquelle tempo, do mais subido valor, como nos attesta Manuel de Faria e Sousa em uma nota (inedita) commentando a esparça, na qual o Poeta se refere á falta da promessa d'aquelle fidalgo. Sabemos porém que elle usava de um chapéu de abas grandes, o que deu logar a um epigramma (inedito) seu, ao ouvir uma senhora que estava a uma janella, chamar outra para ver o homem das abas grandes, que começa:

Quem por abas me quer conhecer, etc.

e que eu não termino por ser d'aquelles poucos do nosso Poeta, que peccam algum tanto contra a decencia.

Se Milton ceiava seis azeitonas, e lhe bebia em cima um copo de agua, as refeições do nosso Poeta eram de uma natureza mais substancial. A ceia dada na India aos fidalgos que vieram com D. Constantino de Bragança nos deixa ver quanto elle se deleitava n'estas agradaveis reuniões de amigos, em que a amizade se espraia, e a alegria vem tirar uma can que alveja na cabeça ainda quente, mas que vae em breve cobrir-se com o gelo da velhice. Entre amigos soldados e homens espirituosos, bem educados e cavalheiros, não podiam deixar de ser estes ajuntamentos os mais deleitosos; sem participarem da orgia que nauseia ou do cerimonial que abafa a alegria, eram comtudo mais livres, temperados porém pela cortezia e boa educação dos fidalgos mais illustres que os compunham, do que essas ceias semi-cerimoniaticas do nosso Sá de Miranda, e que elle nos descreve na sua carta :

Ó ceas do parayso

Que nunca o tempo vos vença
Sem falla trocada ou riso,

Nem carregadas do siso,

Nem danadas da licença:

e assim devia ser; a tenda do soldado, a vida do homem de armas offerece outras liberdades que não se toleram ao magisterio ou á toga do magistrado.

Por alguns epigrammas engraçadissimos nos consta que o Poeta era excessivamente goloso de gallinhas; mais de alguma vez alguns fidalgos com quem tinha amizade, para despertarem a sua musa jocosa lhe faziam promessa, em troco de versos, de algumas aves d'esta especie,

fingindo faltar-lhe ás vezes com o promettido para lhe arrancar ditosespirituosos e chistosos; Faria e Sousa tira d'aqui pretexto para arguir aquelles fidalgos, que diz que tinham alma de gallinha; longe porém de ser da opinião do commentador, eu só encontro n'estes brinquedos uma prova de estimação e de intimo trato dos ditos fidalgos com o nosso auctor, o qual sem duvida ao serio não soffreria tão ridicula paga pelos seus versos divinos. Indo o Duque de Aveiro ouvir missa a Nossa Senhora do Amparo, ahi encontrou o Poeta, e perguntando-lhe o que queria da sua mesa, respondeu-lhe logo que bastava que lhe mandasse uma gallinha; esqueceu-se o Duque, ou fingiu esquecer-se, e depois de haver jantado, quando já não havia outra cousa, lhe mandou uma peça de carneiro, e o Poeta pelo mesmo creado lhe remetteu estes

versos:

Já eu vi a taverneiro

Vender vacca por carneiro,
Mas não vi por vida minha
Vender vacca por gallinha,
Se não ao Duque de Aveiro.

D. Antonio, senhor de Cascaes, por uns versos lhe havia promettido seis gallinhas recheadas, e por gracejo lhe mandou por principio de paga só meia gallinha; accudiu logo o Poeta com esta copla:

Cinco gallinhas e meia
Deve o senhor de Cascaes,
E a meia vinha cheia

De appetite para as mais.

Outro por uma carta de amores lhe mandou quatro frangãos, sem duvida em logar de gallinhas; o Poeta não lhe perdoou, e juntamente com a carta lhe enviou estes versos:

Moscas, abelhas e zangãos
Me comam bofes, e baço,
Se outra como esta faço

A troco de quatro frangãos.

A virtude quando passa ao excesso degenera em vicio; ninguem dirá que um bem calculado equilibrio da receita e despeza não seja uma

condição necessaria para o bem estar da existencia; mas se de economia passa ao desejo hydropico de amontoar e enthesourar riqueza inutil, produz o vicio mais sordido e desprezivel, o da avareza. Do mesmoTM modo se o coração magnanimo e generoso acha uma agradavel voluptuosidade em repartir a fortuna adquirida, se isto é feito com mãos largas produz o vicio opposto, o da prodigalidade, e se é cabeça de familia o que o pratica, são victimas os dependentes, e se é isolado o proprio individuo. D'este vicio, que aliás tem a maior parte das vezes uma origem nobre, foi o nosso Poeta tocado, e a elle attribue Pedro de Mariz os seus embaraços e infortunios, dizendo que como era grande gastador mui liberal e magnifico, pouco lhe duravam os bens temporaes. Foi mais o Poeta fragueiro de corpo e de um animo esforçado, como attestam as honrosas cicatrizes que apresentava no seu rosto.

Agora experimentando a furia rara

De Marte, que nos olhos quiz que logo
Visse e trocasse o acerbo fruto seu,

E neste escudo meu

A pintura verão do infesto fogo.

Em o seu poema se abona a El-Rei D. Sebastião, como soldado valoroso e affeito ás armas.

Para servir-vos braço ás armas feito.

E na carta 1, escripta da India, passa em revista alguns valentões que ali militavam, e n'este numero menciona a Calisto de Siqueira, que Diogo do Couto nos diz que era o maior espingardeiro do mundo, e de quem conta bravuras; a maneira ironica como o Poeta falla n’elle, dizendo que promettêra em uma tormenta conduzir-se mais humanamente, dá a crer que entre ambos se travaram rasões. N'esta mesma carta nos diz, que antes da sua partida de Lisboa, vira as solas dos pés a muitos, mas que nenhum lhe vira as suas. Esta opinião, embora justificada, do seu valor, não só o lançou em rixas, ás vezes involuntarias, e embaraços, mas dava logar, ao que parece, a que os amigos e camaradas o apodassem com a alcunha do Trinca-fortes, como se deprehende de um epigramma do seu amigo Antonio Ribeiro Chiado, em um certame poetico e gracioso, sendo o premio, posto por um fidalgo, uns melões que tinha em uma giga uma regateira:

Luiza tu te avisa

Que taes meloens lhe não des,
Por que esse que ahi ves
Trinca fortes mala guisa.

Algum Catão severo não perdoará ao Poeta o ter ás vezes sacrificado a Venus; nós porém lembrando-nos que todos somos filhos de Adam, pedimos alguma indulgencia para com elle, quando temos a confessar uma aberração sua, isto é, os seus amores com a escrava Luiza Barbara. Debalde o Poeta se esforça em responder 1 á critica que experimentava por este motivo, na bella ode x, trazendo em seu favor os exemplos de Achilles, Salomão e Aristoteles; não colhe o exemplo do primeiro, pois no mesmo Horacio (ode Iv, liv. II), d'onde o Poeta tirou o pensamento d'esta ode, se encontra a differença da côr do objecto amado.

Ne sit ancillæ tibi amor pudori
Xanthia Phoceu; prius insolentem
Serva Briseis niveo colore,

Movit Achillem.

Podiamos adduzir em defeza do Poeta, o verso do seu collega epico e admirador, o grande Tasso:

la Regia moglie

Che bruna e si, ma il bruno il bel non toglie:

e se em objecto de tal natureza podessemos citar os Livros Sagrados o

Nigra sum sed formosa.

Porém a verdade e imparcialidade que havemos tomado a peito desde o principio d'esta memoria, só nos permitte attenuar, mas não justificar um erro. Diremos pois em sua defeza que se o porco de Epicuro se incarnou passageiramente no corpo do Poeta, a sua alma divagou quasi sempre em uma região etherea e platonica, e que esta distracção parece que só teve logar depois que a morte apagou aquella luz radiante que o vivificava, e que ficando solitario, e em trevas no mundo,

1 Vide nota 72.a

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