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parece que tambem nas trevas quereria viver: que a escrava talvez fosse d'estas pardas asiaticas, que apresentam ás vezes fórmas esbeltas e feições regulares, pois aliás me parece que a poesia do nosso Poeta, descrevendo os cabellos, apesar de poderosa, não teria mais força do que o pente em uma rebelde carapinha. Talvez a alma mais candida habitasse um corpo negro, principalmente se é verdade o que se diz que ella saía a mendigar-lhe o sustento, lhe amansasse os tormentos da vida, lhe adoçasse as amarguras, e assim a gratidão ultrapassase os limites da amizade.

Presença serena

Que a tormenta amansa,
Nella emfim descança
Toda a minha pena.

Esta he a captiva
Que me tem captivo,
E pois nella vivo

He força que viva.

Diremos finalmente com o mesmo Poeta:

Fraquezas são do corpo que he da terra,
Mas não do pensamento que he divino.

Porém se o censor severo ainda assim se não inclinar a desculpar esta fragilidade, leia os lindos versos feitos á mesma escrava, que deveram a honra de uma traducção de Chateaubriand; e, tal é o poder do genio! talvez o mesmo leitor se enamore da escrava.

Mas apesar de algumas fragilidades, e quem as não tem, como avultam virtudes tão reaes? Que incendido enthusiasmo e amor pela patria! Como o devora o desejo de exaltar e fazer sobresair o elogio da sua querida patria, especialmente nos cantos III e VII, quando descreve a Europa, e na invectiva que dirige ás nações poderosas que se guerreiam em logar de converter os seus esforços contra o inimigo commum! Como é minado pela saudade, longe da terra natal!

Esta he a ditosa patria amada

Á qual se o ceo me dá que eu sem perigo

Torne com esta empreza já acabada,

Acabe-se esta luz ali comigo.

Note-se que o Poeta não profere uma só vez o nome da patria, que não seja revestido de um epitheto amoroso e de ardente patriotismo. Que bellas maximas! que lições tão moraes apresenta o seu Poema, que nobre liberdade em exprimir os seus sentimentos! É a um rei a quem se dirige, e não receia tocar na injustiça e ingratidão de seu bisavô, nos erros de seus antepassados, e o que é mais ainda, nos do proprio monarcha e d'aquelles que o cercavam.

Via Acteon na caça tão austero

De cego na alegria bruta insana,
Que por seguir hum feo animal fero,
Foge da gente e bella forma humana.

Ve que esses que frequentam os reaes
Paços, por verdadeira e sãa doutrina,
Vendem adulação que mal consente
Mondar-se o novo trigo florecente.

Ao mesmo tempo que elle deseja ver os religiosos afastados das temporalidades, elle os quer ver circumscriptos no seu santo instituto. O final do seu poema é um verdadeiro cathecismo de reis, que os nossos deviam trazer sempre na memoria, como expressões saídas de um coração portuguez, de um homem honrado e de um verdadeiro amante da sua patria. Mas se se apresenta como um advogado do povo opprimido e ousa com nobre ousadia dizer perante o mesmo rei:

Leis em favor do Rey se estabelecem,

As em favor do povo só perecem;

elle não vem como vil adulador captar a benevolencia inconstante d'esse mesmo povo, tão facil em embriagar-se nos seus amores e odios, antes pelo contrario o não poupa quando consola a D. Constantino de Bragança, apontando-lhe os exemplos de ingratidão para com Themistocles, Cimon, Aristoteles e Demosthenes.

Demosthenes lançado das tormentas
Populares, a Pallas foi disendo,

Que de tres monstros grandes te contentas,
Do Drago, e moucho, e do vil povo horrendo.

Mas ai d'aquelle que ousou no campo de batalha voltar costas ao inimigo, quando se tratava de defender os interesses da patria; a disciplina militar não podia infligir-lhe mais severa pena do que a exprobração de um camarada e companheiro nos perigos que, como elle diz de si, nunca os inimigos lhe viram as solas dos pés. Lede a elegia (inedita) á morte de seu amigo D. Alvaro da Silveira, lede a x á de D. Miguel de Menezes, em a qual se encontram estes bellos versos que pela sua energia não posso resistir a transcreve-los:

Mas ai! qual terror subito occupou
O vosso claro peito ó portuguezes?
Qual pavido temor vos congelou?
Que lançadas, que mortes, que revezes
Vos fizeram fazer tamanha injuria
Aos fortes luzitanicos arnezes!

Ou já de Capitam sobeja incuria,

Ou fraqueza? Não: que elle sustentava
Com seu peito, dos barbaros a furia.

Ou já do ferreo cano a força brava

Com estrondos que atroam mar e terra,
E os corações ardentes congelava?
Ah! Quem vos fez que os impetos da guerra
Não sustentasseis com valor ousado,
Desprezando o furor que a vida encerra?

A vida por a patria e por o estado
Pondo vossos avós, a nós deixaram
Em terra e mar exemplo sublimado.

Elles a desprezar nos ensinaram

Todo o temor. Pois como agora os netos
Subitamente assi degeneraram?
Não podem por certo, não, viver quietos
Com fea infamia peitos generosos,

Já em publicos lugares, já em secretos.
Mortos de Espartha os heroes valerosos
Da fera multidão, fazendo extremos
Taes epitaphios tinham gloriosos:
Dirás Hospede, tu, que aqui jazemos
Passados do inimigo ferro em quanto
Ás santas leis da patria obedecemos.

Fugindo os persas vão com frio espanto,
Mas acham as mulheres no caminho
Mostrando-lhes o ventre em furor tanto.
Pois do dano fugis vendo o visinho,
Fracos, vinde a esconder-vos (lhes diziam)
Outra vez no materno, e escuro ninho.
Vede quaes com mais gloria ficariam,

Se aquelles que morreram pelo estado,
Se estes a quem mulheres injuriam?

Que nobreza de sentimentos, e que energia de invectiva respira toda esta poesia!

A mesma emprega na elegia (inedita) em que chora a morte do seu querido amigo D. Alvaro da Silveira, na malfadada empreza de Baharem em que este Capitão foi victima, a acreditarmos o Poeta, do pouco esforço com que foi auxiliado pelos seus soldados que vergonhosamente o abandonaram.

Más gentes que não tem de natureza
Esforço, espirito, sangue e condição,
O seu natural he mostrar fraqueza.
Deixam morrer seu proprio Capitão,
Deixam perder as forças que os sostem,
E tudo lhes consente o coração.

Não tratam da gloria deste bem

Deste viver na fama sempre e vida,

O que lhe dizem deşta não o creem.

Resumindo diremos pois que o Poeta, destituido de todos os meios da fortuna, se apresenta censor imparcial dos erros em todas as classes da sociedade, começando pelo Rei e terminando no povo, desejando para todos uma justiça distributiva e igual, nos seus respectivos circulos; e compare-se este modo de proceder com a lisonja dos seus contemporaneos, e veremos quão nobre era a alma d'aquelle que no meio da maior indigencia, não curvou o joelho á mentira e á adulação, e concluiremos, examinando os preceitos moraes do seu Poema, reflexo do seu coração, que a mais bella alma habitou aquelle corpo que nunca se poupou em servir a patria que adorava, e que ainda hoje nos faz

amar.

XXVI

1 Não deixa de ser curioso, tambem, o examinar o alcance das vistas politicas do nosso Poeta. Havia elle militado na Africa e na Asia, e como soldado pratico conhecia que, postoque o coração de Portugal era grandioso, as forças physicas do paiz não eram sufficientes para tão gigantescas e dilatadas emprezas; assim julgava que se devia robustecer com conquistas mais ao pé da porta, d'onde derivasse força e não se enfraquecesse a população: esta opinião manifesta, pela bôca do velho que na despedida da esquadra de Vasco da Gama, se dirige aos navegantes:

Não tens junto comtigo o Ismaelita

Com quem sempre terás guerras sobejas,
Não segue elle do Arabio a lei maldita
Se tu pela de Christo só pelejas?
Não tem cidades mil, terra infinita,
Se terras e riquezas mais desejas?
Não he elle por armas esforçado
Se queres por victorias ser louvado?

Deixas criar ás portas o inimigo,
Por ires buscar outro de tão longe
Por quem se despovoe o reino antigo,
Se enfraqueça, e se va'deitando a longe!
Buscas o incerto, e incognito perigo,
Porque a fama te exalte e te lisonge,
Chamando-te senhor, com larga copia
Da India, Persia, Arabia e de Ethiopia.

Mas é sobretudo, quando Camões trata do vasto plano europeu de aniquilar o imperio ottomano, que a sua imaginação se inspira de uma nobre e eloquente poesia, e que o pensamento politico do Poeta e estadista avulta. Leão X, este nome que não pode ser pronunciado sem respeito e acatamento por todo o homem que preza as sciencias e as artes, presidia á Igreja Universal no principio do seculo xvi, havendo-se completado na ultima metade do seculo que findava dois grandes acontecimentos politicos da maior importancia, a queda do imperio grego (1453) e a descoberta da India (1497): e postoque os esforços

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