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Enquanto a musa lusitana repete o seu thema constante e diz, por exemplo:

"Papagaio, penna verde,

Empresta-me o teu vestido,

Os teus vestidos são pennas,

Em penas ando mettido",

o sertanejo brasileiro diz quasi a mesma cousa, mas em outra linguagem. que lhe é propria:

"Lá vai a garça avoando,

Co'as pennas que Deus lhe deu:

Contando penna por penna,

Mais penas padeço eu !

O lusitano dirá ainda, naquelle accento melancolico, que constitue o fundo admiravel de toda a sua poesia sentimental:

"Eu jurei de nunca mais
Dizer adeus a ninguem:

Quem parte, saudades leva,

Quem fica, saudades tem".

E o caboclo repetirá o mesmo conceito poetico, mas no molde daquella outra expressão que caracteriza particularmente a sua linguagem pittoresca:

"Quem inventou a partida
Não sabia o que era amôr:
Quem parte, parte sem vida,
Quem fica, morre de dôr!"

Os exemplos repetem-se, estabelecendo a diversidade dos modos de sentir e de cantar dos dous povos, e só esse facto indica, já por si, a importancia do assumpto, bem como a meditação e o estudo que elle requer, mostrando claramente como a poesia popular pode ser o espelho fiel e denunciador do estado de espirito de um povo, das suas crenças e dos seus costumes. Se um leve traço, ás vezes instinctivo, uma palavra, ou um gesto, póde ser a denunciação de um caracter, a fonte de uma psychologia inteira, muito mais podem revelar as trovas ácerca da indole e das tendencias de um povo.

Nossa poesia anonyma é bastante rica desses traços reveladores: conceitos moraes, sentimento, delicadeza, fantasia, inspiração... tudo nella se encontra como rastro seguro da alma sertaneja, matuta ou praieira do Brasil.

E' tempo de tratar das suas principaes producções. Não entraremos na complicada divisão que abrange varios generos, como as xacaras, os romances, os bailes, as cheganças, os reisados e os versos geraes. Só destes ultimos nos occuparemos, pela ausencia dos elementos musicaes que seriam precizos para dar uma idéa exacta de certos folguedos populares, como o Baile das Lavadeiras, as cheganças do Marujo e do Bumba meu Boi e os reisados da Borboleta, do Maracujá e do Pica-páo.

Os versos geraes são quadras simples, quasi sempre cantadas ao som da viola e ao desafio, por vezes acompanhadas de dansas, que se executam nos

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sambas, chibas e cateretês: variam, conforme as tradições e o genero de vida dos habitantes do solo, divididos em tres grandes grupos e constituindo tres populações differentes: das praias, das mattas e dos sertões, sendo por isso chamados praieiros, matutos (tabaréos, caipiras e mandiocas) e sertanejos.

Cada um desses grupos tem modo de vida differente e a sua poesia peculiar fructo das varias fontes de inspiração e da diversidade de aspectos da natureza nas tres grandes zonas em que se divide o paiz.

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Os praieiros habitam palhoças, não desamparam a viola e substituiram a agua da Castalia por um outro liquido de menor pureza e innocencia, a que chamamos cachaça, e que a sua pernosticidade denomina pittorescamente pinga, mandureba, jurubita, canna, branca, sinhazinha e paraty. Dil-o uma das suas trovas:

"Quanta dôr me vai no peito
Quando estou longe de ti!

Só me passa um bocadinho
Quando bebo paraty!"

E' principalmente com esses que se improvisam os sambas, em que o mestiço bebe, ama, dansa e canta ao desafio.

Velhos acodem pressurosos para ouvir os novos trovadores; Sylvio cita o caso caracteristico de um ancião que, não podendo mais fazer vibrar os instrumentos, annunciava com tristeza: "eu sou aquelle que possuiu sete violas".

Não cabe aqui estudar as superstições peculiares a todos os tres grupos da população brasileira. Basta citar as que se ligam á religião e ás abusões e crendices sobre as almas do outro mundo, os animaes encantados (lobis-homens, sacys e mulas sem cabeças), as rezas e benzeduras, e certas doenças como O feitiço, o máo olhado e a espinhela cahida.

As mulheres são os receptaculos mais copiosos dessas abusões:

"Quando S. Pedro diz missa,
Jesus-Christo benze o altar;
Assim benzo a minha cama
Quando venho me deitar."

Nas cidades, onde predominam os capadocios e quasi sempre as festas religiosas, cantam-se de preferencia as cheganças, as racaras e os reisados.

O Natal e o Anno Bom inspiram as trovas que se ouvem nas lapinhas e presepes. Nos outros lugares predomina o samba e com elle o desafio, o improviso á viola, sempre animado pela frescura e pelos ardores da paixão meridional. Algumas trovas são de criação puramente anonyma; outras, de cunho individual, mas de que as massas se vão apossando, como acontece com as modinhas.

De criação individual e vulgarisados pelas populações sertanejas são alguns cantos do Norte, dentre os quaes avulta, pelo pittoresco e pela espontaneidade dos versos, o que se intitula o Rabicho da Geralda.

Rabicho era o nome de um boi destemido, que vagava pelos sertões do Ceará, desafiando quantos vaqueiros primavam na destreza do braço e na lepidez da carreira.

Geralda era a sua proprietaria.

O povo, associando os dous nomes, conservou na lenda o titulo facil de Rabicho da Geralda,

Citarei apenas alguns trechos do canto, que é bastante longo:

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Não sei como nesse dia
Não se acabou mesmo tudo!

Foi uma carreira feia
Para a serra da Chapada:
Quando cuidei, era tarde,
Tinha o cabra na rabada!

"Corra, corra, camarada, Puxe bem pela memoria; Quando eu vim da minha terra Não foi p'ra contar historia".

Tinha adiante um páo cahido

Na descida de um riacho:

O cabra saltou por cima,

O Russo passou por baixo...

Apertei mais a carreira,
Fui passar no boqueirão:
O Russo rolou no fundo,
O cabra pulou no chão.
Nessa passagem dei linha
Descansei meu coração,
Que não era desta feita
Que o rabicho ia ao moirão!

Veio aquella grande secca
De todos tão conhecida,
E logo vi que era caso
De despedir-me da vida.
Seccaram-se os olhos d'agua
Onde eu sempre ia beber;
Botei-me no mundo grande
Logo disposto a morrer.

Segui por uma vereda
Até dar n'um cacimbão;
Matei a sêde que tinha,
Refresquei o coração.

Quando quiz tomar assumpto,
Tinham fechado a porteira;

Achei-me numa gangorra
Onde não vale a carreira.
Corrigi os quatro cantos,
Tornei a voltar atraz,
Mas toda a minha derrota
Foi o diabo do rapaz.

Correu logo para casa

E gritou aforçurado:

"O' gentes ! Venham depressa,

Que o Rabicho tá pegado!"

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As quadras geraes improvisam-se nos sambas, chibas e cateretês, acompanhadas geralmente de dansas, ao som de violas e de pandeiros.

O typo commum é o descripto por Sylvio Romero e Mello Moraes: os convidados acham-se a principio sentados em bancos; um par se destaca e inicia a dansa, com requebros particulares; ao fim de alguns minutos, esse par vai dar uma umbigada em outro que se acha sentado e que, por sua vez, entra a dansar, acceitando aquella especie de indicação ou convite. O 2.o par indica um 3.o; o movimento generaliza-se e começam então os desafios, que tomam logo a fórma de dialogos. Exemplo:

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A' belleza do desafio que se admira nesses torneios, ha ainda a ajuntar a presteza das respostas, e, muitas vezes, a propriedade dos conceitos, a precisão das imagens,

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