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PERFIS DE ESCRIPTORES NACIONAES

CONFERENCIA REALISADA A 30 DE OUTUBRO DE 1915, PELO SR. NESTOR VICTOR

Venho falar-vos de tres notaveis romancistas do Norte, nossos contemporaneos, todos tres actualmente homens velhos.

Onde elles vivem os lêm, e uns os louvam, outros os apoucam, si não os negam, mas de qualquer modo discutem-nos, conseguintemente dão-lhes notoriedade.

Não é só no local onde estes escriptores moram, nem é só até no Estado a que pertencem, ou a que se adaptaram, que se fala d'elles. E' um pouco por toda parte no Norte, embora possa acontecer muito bem que até um ou outro dos componentes desta trindade ignore a obra sinão o nome daquelle dentre seus pares que se desenvolveu e até agora ainda reside em Estado muito distante do seu.

No Rio encontram-se nortistas e não nortistas que os têm lido a todos, a uns mais, a outros menos, e até póde-se dar que alguns desses curiosos nem sejam homens de letras. Entre estes o caso é de produzir menos estranheza, mas é preciso reconhecer ainda que varios, até um ou outro daquelles que andam lá pelo estrangeiro conquistando auditorios e leitores europeus, têm escripto referindo-se a estes homens, ou ao menos a algum delles, a proposito de um seu livro, sinão da sua obra total.

Nada sei do que se sabe e se tenha publicado sobre esses escriptores do Norte no Sul.

Dá-se uma circumstancia: o Sul está cheio de bahianos e de cearenses, na sua maior parte doutores ou bachareis, é certo, mas isto não obsta que este ou aquelle se dê ao desfastio da leitura de romances. De modo que é possivel um ou outro tenha falado e até noticiado pelos jornaes alguma coisa sobre esses patricios distantes e suas fabulações.

Depois, no Sul, fóra mesmo do circulo nortista, ha nas letras um ou outro estudioso que acompanha de perto, quando menos, o que se faz e o que se diz no Rio: tanto basta para que não ignorem os nomes desses tres benemeritos velhos, não sendo até impossivel que conheçam um ou mais livros deste ou daquelle dentre os tres.

Dá-se mesmo uma anomalia curiosa principalmente em Minas e no Estado de S. Paulo. Lá no recesso das fazendas vão-se encontrar fazendeiros, muitos delles medicos, bachareis, leguleios, mais eruditos do que muitos professores e varios criticos cariocas. E' verdade que essa gente sobretudo ao que se dá é á leitura de Homero, de Virgilio, de Horacio, como fortes hellenistas e latinis

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tas que são. Mas não é coisa do outro mundo que dentre elles alguns sc encontrem bastante patriotas para lerem tambem alguns brazileiros, levando o ardor do seu civismo até o ponto de terem procurado adquirir estas ou aquellas paginas que lhes falem da vida e dos homens do Norte. Nesse caso, nada me sorprehenderia haver até nesses reconcavos creaturas a cujos ouvidos tivesse alguma significação um ou dois dos tres nomes com que hoje me vou occupar.

Mais não se pode exigir. No Brazil, por emquanto, as vias de communicação para as relações de ordem intellectual são muito mais deficientes, mais cheias de hiatos e de vicios do que os caminhos maritimos e terrestres para as communicações de commercio e de industria.

A culpa está principalmente no Rio. O Rio é o centro para que se voltam todas as attenções nesse como em tantos outros sentidos. Mas ao intellectual do Rio o tempo é pouco para cuidar de si mesmo.

Primeiro precisa viver. E hoje elle não é bohemio como foi noutros tempos. Quer vestir bem, quer casar-se bem, quer aboletar-se bem.

O momento não lhe é para isso muito desfavoravel. Entre os typos de mais eminente destaque social muitos ha que já se honram na sua companhia, e até já querem ser ou passar por homens de letras tambem. As proprias mulheres começam a sentir-se attrahidas pelos literatos a seu turno: não raras até já se vão aliteratando mais ou menos.

De tudo isto resulta a vida de salão para os nossos intellectuaes, que até ha pouco quasi que a não conheciam. Elles hoje dançam o to-step, o one-step, la matchiche e outras danças modernas ás vezes com a perfeição dos melhores dançarinos. Quando não dançam, dizem versos e ouvem muzica, de que se vão tornando até bons criticos. Comprehendem desde Wagner até Debussy.

As visitas que o literato faz aos salões lhe são generosamente pagas pelas cheias á cunha que varios delles obtêm da nata sccial feminina e masculina, quando realisam suas conferencias ou seus mais complexos festivaes artisticoliterarios. Até quem vos fala, apezar de tão pouco mundano e tão canhestro, já os realisou, e pode envaidecidamente dizer que com bom exito.

Não são apenas os salões familiares e de conferencias que tomam tanto tempo ao literato carioca hoje em dia. São os salões de pintura, a Academia Brazileira, a recente Sociedade dos Homens de Letras, e com a grande guerra as festas da Liga pelos Alliados, alem das outras pelas victimas da secca ou dos jagunços do Sul, os cinemas, os theatros, os piqueniques, os casamentos, as casas de chá.

Mas, alem de tudo isto, ha o terrivel ganha-pão, a sala do jornal ou o emprego publico sob qualquer modalidade, as visitas de immediato interesse, as cartas, cartões, telegrammas e pneumaticos, os enterros, as missas, as entrevistas, as trepações literarias por politica literaria nas livrarias ou nos cafés. Ha os artigos de encommenda para abrilhantar as revistas e os jornaes, aquellas de ordinario nos sabbados, estas nos domingos, ha as poses nos photographos para cs clichés dos jornaes e hebdomadarios. Ha que frequentar as redacções ainda que se não seja daquella vida. E nesta vertigem tem-se de fazer face ás brigas, quasi sempre por letras ou por amores, ás intrigas no officio, aos combates a pistolão nos corredores das Secretarias.

Dahi fazerem-se poucos livros, qque aliás quasi não têm actualmente editores, apenas lerem-se, quando não seja perpassarem-se tão só, aquelles que se tem de ler por obrigação, levar-se uma vida de apparencia muito brilhante, é certo, mas quasi sempre muito vasia, e principalmente muito inferior, alem de tudo pela nossa iniquidade, pelo nosso egoismo. Furtamo-nos quasi por com

pleto á responsabilidade do nosso papel occasionalmente central, quasi nada fazendo, nem querendo ver o que longe de nós, dentro do proprio paiz, outros fazem. Não vivemos intellectualmente, por pouco se pudera dizer, nem mesmo registramos como nos cumpria a vida que se consegue produzir para um lado e para o outro do paiz.

Por essa forma, quem lá fóra trabalha não alcança eco, fica confinado quasi que absolutamente no meio estreito onde o acaso o collocou, entregue á mesquinhez natural a taes atmospheras sem o correctivo e sem o lenitivo de uma justiça mais ampla, mais autorisada e honrosa, como a do Rio tem obrigação de ser.

Dahi uma completa falta de articulação no mundo literario brazileiro: o Norte fica para o Norte, o Sul para o Sul, e o Rio ignorante de uns e de outros, só pensando em si, illudindo os simples lá de fóra, que lhe dão uma importancia muito superior á que elle de facto merece, resultando de tudo isso miseria analoga á que resulta da nossa vida politica, da nossa vida commercial, da nossa vida industrial. Não reagimos, nós outros intellectuaes; submettemo-nos passivamente á atmosphera do tempo. Quando desta geração se falar, haverá motivo para dizer-se tão mal dos outros homens nossos contemporaneos como de nós mesmos.

Por hoje, comtudo, peço licença para abrir um parenthese, embora muito pequeno, na ethica literaria actual. Vamos falar desses tres ausentes, e ausentes que nunca funccionaram aqui como homens de letras, nem é de esperar na edade em que já estão possam vir ainda viver e trabalhar no Rio com a penna.

Falar-vos-ei em primeiro lugar de Rodolpho Theophilo, que hoje tem sessenta annos feitos e, que eu saiba, uns doze livros publicados.

Nasceu no Ceará. Em 1872 foi para Pernambuco fazer preparatorios. Em 1873 alongou-se até a Bahia para tirar uma carta de pharmaceutico. Em começo de 1875 voltou para o Ceará, onde abriu casa, começou a manipular preparados e a escrever livros de sua invenção, e nessas duplas funcções de escriptor e droguista ficou sem mais arredar pé do solo natal, da "patria", como elle diz, a não ser talvez em rapidas excursões, que ignoro.

Não sahiu, entretanto, um pharmacópola de roça e um literato de provincia que se meça pela craveira commum.

Intelligente e arguto, indagador e inventivo, dos estudos profissionaes tirou dois proveitos: uma philosophia, a racionalista, que combate as abusões religiosas e erige a fé na sciencia, philosophia talvez um pouco arida, mas robusta e combativa, e um espirito de independencia social, que o aviamento das receitas e sobretudo o consumo dos seus preparados tornaram possivel e plausivel mesmo dentro do estreito ambito da sua actividade commercial.

Por esta forma, não se sujeitou a ser creatura passiva, o eleitor fiel, o' defensor incondicional do medico que lhe protegesse o negocio e á noite viesse pontificar na pharmacia, como se dá com os seus collegas de provincia em geral. Não, elle teve logo idéas proprias, não só sobre o universo, como sobre os mandões locaes, chegando a ponto de se não sujeitar, não só á politica do seu medico, como até á de nenhum chefe eleitoral do Ceará. Collocou-se sobranceiro a todos, embora com o devido respeito á posição de cada um, dando-se o direito de julgal-os com muito mais legitima independencia, embora com muito

mais cortezia, do que os proprios orgãos de publicidade que se inculcam por imparciaes.

Veiu a secca de 1877, a mais atroz que na segunda metade do seculo XIX ali se produziu, e elle dia a dia foi escrevendo a sua historia com a mesma intenção de justiça com que Tacito fez a historia da decadencia romana, embora com menos inexorabilidade e sem espirito de sarcasmo nenhum.

Depois da secca veiu outro mal verdadeiramente terrivel: "A cascavel, diz Virgilio Brigido, devastava os sertões de um modo assombroso. Appareciam estes terriveis reptis com tal abundancia, que individuos havia que tinham morto para mais de quinhentos em pouco tempo".

Então Rodolpho Theophilo deixou de fazer livro e entrou em acção. Assegurando-se de que daria bons resultados a applicação do permanganato de potassa contra o veneno ophidico, mandou buscar os apparelhos necessarios, fez imprimir directorios e distribuiu-os gratuitamente por todos os municipios do Ceará. Assim acabou dentro em pouco com a nova calamidade, não menos ameaçadora do que a propria secca.

Esta, porem, tinha-lhe deixado as mais profundas impressões no espirito. Fôra-lhe insufficiente escrever a sua historia; com isso não descarregara a imaginação dos quadros dantescos que nella aquella grande desgraça collectiva The havia stereotypado. Depois de ter feito a historia fez o romance da secca, com que se estreou no genero.

Foi após esse livro, intitulado A Fome, que vieram vindo suas outras obras romanticas: Os Brilhantes, como se chamava uma familia de bandidos, hoje lendaria no Ceará; Maria Ritta, em que architecta scenas cearenses como passadas ainda no tempo colonial; Violação, novella que recorda a tragica epidemia do cholera-morbus por 1862; finalmente O Paroara, como se chama no Ceará aquelle que volta do Amazonas com os dedos cheios de anneis e bolçando ostensivamente das algibeiras grossos maços de dinheiro em papel.

Entre um e outro romance foram sahindo á luz outros livros, ora de sciencia, como a Monographia da Mocuna, uma Botanica Elementar, uma serie de contos em que se dão noções de sciencias naturaes, (ambos estes ultimos para seus alumnos na Escola Normal de Fortaleza), ora livros de assumptos sociaes ou politicos, como o resumo da historia das Seccas do Ceará na 2a metade do Seculo XIX, e ultimamente 418 paginas contando a Libertação do Ceará (queda da oligarchia Accioly). Antes de todos estes livros elle tinha publicado um volume de versos, que intitulou Campesinas.

Nunca, entretanto, os labores da escripta o absorveram a tal ponto que anesthesiassem em Rodolpho Theophilo a fibra da acção propriamente dita. E essa fibra tem sido sempre tão truculenta que de vez em quando torna a revelar-se por um gesto generoso fóra de toda medida commum, fadado necessariamente á fama, embora apenas no theatro exiguo onde elle representa o seu papel.

Está nesse caso a parte saliente que Rodolpho tomou, de 1882 a 1883, na campanha abolicionista da "terra da luz". Esta, como se sabe, foi a precursora do grande movimento humanitario que depois se assenhoreou de todo o Brazil. Só o nosso bravo escriptor libertou uma comarca inteira, a comarca de Pacatuba, um dos centros da lavoura da Provincia, o que conseguiu "não sem grandes despezas suas".

Mais tarde, testemunha occular da rasoura tremenda que fazia a variola em seu Estado, principalmente por occasião das seccas, emprehendeu com grande animo vaccinar o Ceará inteiro á sua custa, e em grande parte por sua acção

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