Pagina-afbeeldingen
PDF
ePub

D'este diluvio houveram algúas d'estas damas medo, e edificaram hua Torre de Babylonia, onde se accolheram; e vos certifico que são já as linguas tantas, que cedo cahirá, porque ali vereis moiros, judeus, castelhanos, leonezes, frades, clerigos, casados, solteiros, moços e velhos. A esta torre chamaram accolheita, pela fortaleza d'ella; mas o philosopho João de Melo lhe poz nome o Rompeo, porque he de tres páos, sc.: de Francisca Gomes a tarifa, Antonia Braz, afóra a Bolla, que he Maria da Rosa. Eu o chrismei ha poucos dias, e lhe puz o nome o Malcosinhado, porque sempre achareis n'elle que comer, quer bem, quer mal. E tudo o d'estas senhoras he brando, rostos novos e canos velhos; são boas para Nymphas d'agua, por que não deitam mais que a cabeça fóra. A rasão por que se comem estas por Lisboa mais que as outras, he que afóra seus rostinhos, servem de foliões que cantam e bailam tão bem, que não hão inveja aos que El Rei mandou chamar. E o pagode que se faz sem estas he da seita dos Epicuros, que punham a bemaventurança em comer e beber; mas eu digo que o faziam, porque estas não foram em seu tempo.

<< N'estas casas acharão continuamente muitos Cupidos valentes, dos quaes suas alcu

1 Julgamos uma referencia sarcastica ao terrivel inquisidor João de Mello, domestico do Cardeal Infante D. Affonso em Evora, que pertencendo ao Tribunal do Santo officio de Evora em 1536, passou para o de Lisboa em 1539, onde se fez notar pelo seu rigor. Em 3 de Outubro de 1541, assignava a sentença contra Bandarra. Esta allusão determina-nos com segurança a epoca a que se refere a carta de Camões.

nhas são-matadores, matistas, matarins, matantes, e outros nomes derivados d'estes, porque sempre os achareis com cascos e rodelas, cum gladiis et fustibus, como se Nosso Senhor houvesse de padecer outra vez. Confesso vos que estes me fazem fazer o mesmo. Estes na pratica dir-vos-hão que

Sus arreos son las armas,

su descanso es pelear.

< Mas, sei-vos dizer, que se

Na paz mostram coração,

Na guerra mostram as costas;
Porque aqui torce a porca o rabo.

< Como vos parece, senhor, que se pode viver entre estes, que não seja melhor essa vida que vos enfada, essa quietação branda, com um dormir á sombra de hua arvore, e ao tom de um ribeiro, ouvindo a harmonia dos passarinhos, em braços com os Sonetos de Petrarcha, Arcadia de Sanazaro, Eglogas de Virgilio, onde vêdes aquillo que vêdes? Se a vós, senhor, essa vida vos não contenta, vinde trocar pela minha, que eu vos tornarei o que fôr bem.

« E não vos esqueçaes de escrever mais, porque ainda me fica que responder, cujas mãos beijo. »

A comprehensão d'esta carta depende do conhecimento da data em que foi escripta; é omissa, mas estabelece se pela referencia á conversação dos Apostolos, ou os Jesuitas, quando se tornaram os directores espirituaes da côrte, e armaram procissões de penitencia, firmando o seu predominio em 1543. O bea

terio, então se differençava pelos varios coios que frequentava, na egreja de San Domingos, na ermida de Santa Barbara situada ao Campo da Fôrca, na capellinha da Senhora do Monte, ás sextas feiras, 1 e aos sabbados na Graça, e com suas devoções especiaes, umas para casarem, outras porque têm os maridos ausentes. As alegres digressões em volta de Almeirim estavam abandonadas por este fervor religioso, que mascarava as intrigas amorosas. Camões escreveu umas redondilhas A uma senhora resando por umas contas, com a intelligencia da situação:

Peço-vos que me digaes

As orações que resastes,
Se são pelos que matastes,
Se por vós, que assi mataes?
Se são por vós, são perdidas;
Que qual será a oração

Que seja satisfação,

Senhora, de tantas vidas.

As cinco estrophes d'estas redondilhas são de uma graça e finura incomparaveis. A ideia agradou, e motivou o desenvolvimento da primeira estrophe glosada como delicioso commentario, dirigido A uma Senhora resando. Tornara-se uma elegancia cortesanesca o

1 Annotando esta passagem, escreve o Dr. Xavier da Cunha: Ainda hoje a pittoresca Ermida de N. S. do Monte é mui concorrida ás sextas feiras por devotos, e sobretudo por devotas que na iminencia da maternidade vão alli sentar-se na lendaria cadeira do bispo S. Gens esperançadas em que esse acto piedoso lhes proporcionará feliz successo ao nascimento dos filhos,>

*

resar nas contas, que eram tambem um adorno, um luxo. Na Arte de Galanteria, D. Francisco de Portugal avisava as damas: «ni en la tribuna haga demasiado ruido con las cuentas, que no parecerá que resa devota, si no que llama devotos.» (Op. cit., p. 43.) Foi tambem em uma egreja, que Luiz de Camões viu a juvenil Dama da Rainha, que se lhe apossou do espirito:

Todas as almas tristes se mostravam
Pela piedade do Feitor divino,
Onde ante o seu aspecto peregrino

O devido tributo lhe pagavam.

Meus sentidos então livres estavam,

Que até hi foi constante o seu destino;
Quando uns olhos, de que eu não era dino,
A furto da rasão me saltearam.

A nova vista me cegou de todo,
Nasceu do descostume a estranheza
Da suave e angelica presença.

Para remediar-me não ha hi modo!
Oh, porque fez a huma Natureza
Entre os nascidos tanta differença? 1

Seria na Capella real, junto dos Paços da Ribeira, que poderia Camões vêr a angelica

8

1 No Cancioneiro de Luiz Franco. (Juromenha, Soneto 303. Obr. II, p. 152.)

Os Paços da Ribeira estendiam-se na sua ampla área de norte a sul até ao mar; rodeados de arcadas em que se arruavam mercadores, diante da sua vasta frontaria estendia-se o Terreiro do Paço, que ainda conserva o nome; sobre um dos lados se elevava um torreão, em cujos baixos estava estabelecida a Casa da India, ficando-lhe a leste a Alfandega, a Casa dos Contos e o Terreiro do Trigo. Á porta principal da cidade era o Pelourinho velho, onde estavam officialmente doze

presença, no séquito da Rainha. A Capella real, com frente para o largo do Relogio, hoje denominado do Pelourinho, tinha ingresso por duas amplas escadas, achando-se cercada por lojas de capellistas. Olhar, sentir amor por uma dama do Paço e muito moça, o proprio Camões lhe chamou um atrevimento.

A situação não era uma imitação do caso dos amores de Petrarcha, como o fazia suppôr a relação paraphrastica do Soneto III com o Soneto LXXVII de Camões; estava na realidade dos novos fervores devotos da côrte de Dom João III, tal como a Carta transcripta o revela. Um immenso desejo incitaria o poeta a pretender entrar na côrte, para vêr a rara e angelica figura que a furto da rasão o salteara. Como conseguilo? É certo que os seus versos foram lidos no paço, e apreciados; Dom João III entendia de poesia, e o Infante D. Luiz era excellente poeta. O rei desejou vêr os versos de Camões, as redon

escrivães para redigirem em nome das pessoas analphabetas; d'alli se seguia para o occidente a Rua Nova, a principal da cidade, com arcarias gothicas, onde havia o mais activo commercio de negociantes nacionaes e estrangeiros, inglezes, flamengos e estantes florentinos. Para o norte ia a Rua Nova d'El Rei dar ao Rocio, um dos extremos da cidade, onde se erguiam o palacio dos Estáos, agora da Inquisição, o Hospital de Todos os Santos, e a léste o Convento de S. Domingos, estendendo-se adiante o bairro da Mouraria, e sobranceiro o Monte de Sant'Anna, em volta de cuja egreja se iam accumulando as casarias. Era n'este bairro novo, que se estendera para o valle rompendo a muralha, que morava a familia de Camões, quando frequentou os Paços da Ribeira; no monte de Sant'Anna habitou nos ultimos annos da vida e d'alli vinha intellectualmente distrair-se com os frades de S. Domingos.

« VorigeDoorgaan »