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pairava-lhe a imaginação idealisando os feitos narrados nos pulverulentos chronicons da historia portugueza ou representados em alguns monumentos da arte nacional. Era o Canto heroico da Gente lusitana, o Pregão eterno, que se elaborava no audacioso pensamento. Os eruditos, referindo tantos feitos grandiosos, sentiam que elles não tivessem ainda inspirado um novo Homero, que os não universalisasse um outro Virgilio. Os poetas da Renascença sentiam se mesquinhos diante d'estes supremos modelos. E ahi, nos Paços da Ribeira, quando Camões se via mais estimulado pelos quadros do Descobrimento da India representados nas colgaduras manoelinas, de repente o seu pensamento é offuscado pela fulguração de uma belleza feminina que The empolga todos os sentimentos do seu sêr moral. Foi a psychose subita, que o tornou namorado, apaixonado, louco pela candura e seducção da mulher que ainda mal se destaca da criança, sem a consciencia do seu poder. Desde esse momento decisivo da sua vida, mundo appareceu-lhe a uma outra luz, sob um aspecto que até ali não vira, sentindo-se absorto em uma atmosphera de encanto:

Um não sei que suave, respirando
Causava um admiravel, novo espanto,
Que as cousas insensiveis o sentiam.

E' quasi com terror que esta fascinação que anima as cousas materiaes, o leva a considerar o surprehendente reflexo em si proprio:

Porque, quando vi dar entendimento
A's cousas que o não tinham, o temor
Me fez cuidar que effeito em mi faria!
Conheci-me não ter conhecimento.

Sob esta emoção perdendo a consciencia critica, abandona-se ao sentimento exclusivo e absoluto:

Assi, que indo perdendo o sentimento
A parte racional, me entristecia
Vêl-a a um appetite submetida;

Mas dentro n'alma o fim do pensamento
Por tão sublime causa me dizia
Que era rasão ser a rasão vencida.
Oh grão concerto este!

Quem será que não julgue por celeste
A causa d'onde vem tamanho effeito;
Que faz n'um coração

Que venha o appetite a ser rasão?

Na Canção v retrata os traços physionomicos, as linhas sensuaes que acordando o desejo, elevam a mulher á adoração:

...os olhos bellos,
Verdes e graciosos,

Debaixo de arcos negros e delgados;
Os ondados cabellos
Loiros, longos, formosos,

Agora ao vento soltos, ora atados.
Os dentes, que cercados
Estão de sangue e riso,

As perlas imitando;
A testa onde cegando

A vista está; o carão delgado e liso,
A côr, a graça, o siso,

O seguro repouso honesto e brando,
Que Deus na terra deu

Para sinal de pax ao mundo seu.

(Jur., Obr., t, 11, 510.)

O seu caracter transformou-se n'esta crise passional, em que outros poetas se afundaram, como Bernardim Ribeiro e Garci Sanchez de Badajoz; declara-o na Canção VIII :

Depois de entregue já ao meu desejo
Ou quasi n'elle todo convertido,
Solitario, silvestre e inhumano.
Tão contente fiquei de ser perdido,
Que me parece tudo quanto vêjo
Excusado, senão meu proprio dano,
Bebendo este suave e doce engano,
A trôco dos sentidos que perdia,
Vi que Amor me esculpia
Dentro n'alma a figura illustre e bella,
A gravidade, o siso,

A mansidão, a graça, o doce riso.

Na deslumbrante psychose, aquella mulher é unica no mundo, e sómente ella o lançou n'esse estado de amnesia; na Canção XI, em que historía todas as phases amarguradas d'este immenso amor, representa Camões o rapido momento em que ficou tomado:

O doce e piedoso

Mover de olhos, que as almas suspendia,
Foram as hervas magicas, que o Céo
Me fez beber: as quaes por longos annos
N'outro sêr me tiveram transformado,
E tão contente de me vêr trocado,
Que as magoas enganava co'os enganos;

No preludio da Ecloga 1, celebrando a morte de D. Antonio de Noronha e do Princepe D. João, escripta em 1554, desenha Camões um quadro da côrte de D. João III, que elle illuminara com os fulgores do seu talento:

Eu vi já d'este campo as varias flores
A's estrellas do céo fazendo inveja;
Adornados andar vi os pastores
De quanto por o mundo se deseja;
E vi co'o campo competir nas côres
Os trajes, de obra tanta e tão sobeja,
Que se a rica materia lhe faltava,
A obra de mais rica sobejava.

E vi perder seu preço ás brancas rosas,
E quasi escurecer-se o claro dia
Diante de umas mostras perigosas,
Que Venus mais que nunca engrandecia.
As pastoras, emfim, vi tão formosas,
Que o Amor de si mesmo se temia;
Mas mais temia o pensamento falto
De não ser para ter temor tão alto.

Camões recordava-se d'aquella constellação de damas, que traziam fascinada uma pleiada de jovens fidalgos inspirados poetas, que formavam uma nova geração de Fieis do Amor; eram D. Manuel de Portugal e Pedro de Andrade Caminha, apaixonados por Dona Francisca de Aragão; Jorge da Silva, louco de admiração pela encantadora Infanta Dona Maria; D. Simão da Silveira, sempre alquebrado pelos rigores de D. Guiomar Henriques, João Lopes Leitão procurando fallar ás damas como a borboleta que se arroja para a luz, e embora mais tarde, obedece a esta corrente de idealismo erotico o gentil D. Antonio de Noronha, bem perdido por D. Margarida da Silva. Eram estes os pastores adornados, que vira Camões n'aquelles Paços da Ribeira, onde as damas faziam inveja ás estrellas do céo, e onde viu tambem as mostras perigosas, que lhe tiraram ao pensamento o temor tão alto, perigosas porque a que o inspirava

entrava apenas na adolescencia, e era dama da rainha, temerosa pela sua austeridade. Todas essas paixões foram mais ou menos transitorias, méramente galanteios ou sonhos desilludidos; sómente Camões sentiu profundamente, dominado por uma absorpção abso luta. O Dr. Storck, estudando como eximio traductor as poesias completas de Camões, e compenetrando-se das situações da sua vida, chegou á conclusão fundamental: Das poesias de Camões resulta, que na sua vida houve uma só paixão forte, profundamente arreigada, que lhe proporcionou poucos e fugazes dias de felicidade e longos annos de tormentos. Ella acompanha e persegue ainda o expatriado, através de terras e mares, na miseria do desterro perpetua saudade da sua alma.» Quem foi essa dama, em que se concentrou a existencia affectiva do poeta, e de quem provieram todos os seus trabalhos?

1

Entre varios nomes poeticos de damas, apenas com expressão allegorica, apparece nos Sonetos de Camões (n.° 70, 103, 147 163, na Ecloga XV e em um Acrostico em redondilhas) o nome de Natercia, anagramma perfeito de Caterina, ao qual se liga na Ecloga e no Acrostico o appellido de Athayde. Revelado furtiva ou indiscretamente o nome da namorada Catherina de Athayde, a que familia pertencia ella, quando nas Moradias da Côrte e nas genealogias contemporaneas se encontram quatro damas com este mesmo nome?

1 Vida e Obras, p. 323. Trad. Michaëlis.)

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