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Camões, se não estivesse longe de Portugal, encontraria no Cancioneiro de Resende um Vilancête de D. João de Menezes a uma escrava sua. Transcrevemol-o, para fundamentar o eterno principio da egualdade perante o amor:

Vylancete de D. Joam de Menezes:

A UMA ESCRAVA SUA

Catyvo sam de catyva,
servo d'uma servidor,
senhora de seu senhor.

Porque sua fermosura
sua graça gratis data,
o triste que tarde mata,
he por mór desaventura.
Que mays val a sepultura
de quem he seu servidor,
qu'a vida de seu senhor.

Nam me dá catividade,
nem vyda pera viver,
nem dita pera morrer,
e cumprir sua vontade;
mas paixam nem piadade.
huma dor sobr'outra dor,
que faz servo do senhor.

Assy moiro manso e manso,
nunca leixo de penar,
nem desejo mais descanso
que morrer por acabar.

Oh que triste desejar,

para quem com tanta dôr

se fez servo de senhor.

(Canc. geral, t. 1. p. 130. Ed. Stutt.)

Em que epoca foram os amores de Camões pela Barbora cativa? Pode-se determinal-a

por uma simples inferencia. Partindo Camões na Armada do Sul em Abril de 1556, chegou a Malaca, cujo commercio com a China fôra inaugurado por Affonso de Albuquerque, quando alli esteve; em Malaca teve conhecimento da tradição crudelissima, que mancha o caracter d'aquelle grande capitão; ainda se fallava da dureza com que mandou matar o joven soldado Ruy Dias, sómente porque andava de amores com uma escrava sua. 1 Camões consignou essa impressão, que tanto se relacionava com os seus recentes amores, no Canto x dos Lusiadas, em que estava trabalhando:

Mais estanças cantara esta Sirena

Em louvor do illustrissimo Albuquerque;
Mas alembrou-lhe uma ira que o condena,
Postoque a fama sua o mundo cerque.

Parece de selvaticas brutezas,
De peitos inhumanos e insolentes,
Dar extremo supplicio pela culpa

Que a fraca humanidade e Amor desculpa.

Não será culpa abominoso incesto.
Nem violento estupro em virgem pura;
Nem menos adulterio deshonesto,

Mas c'uma escrava vil, lasciva e escura.

(St. XLV a XLVII.)

1 Ruy Dias era natural de Alemquer, e filho de Diogo Dias Bocarro, tabellião do judicial n'aquella terra. (Goes, Chron de D. Manoel, P. II, cap. 6.) Apparece este tabellião como confrade da Confraria do Espirito Santo, d'aquella villa, no reinado de D. Manoel. (No Damião do Goes, n.° 719.)

1

Em outra qualquer época não accentuaria com tanta viveza esta mancha na acção de Affonso de Albuquerque; é pois dos fins de 1555 para o primeiro trimestre de 1556 que se viu Camões cativo da «Cativa gentil que serve e adora.» ' Essa paixão foi rapida, fulgurante, sendo interrompida pela partida na Armada do Sul, a que não podia faltar ante a severidade do governo de Francisco Barreto o qual n'essa expedição tinha em vista favorecer o poeta, sendo aliás considerada pelos biographos como uma perseguição. O arrancamento a esta paixão hallucinada pela Barbora cativa, revela-nos que o embarque na Armada do Sul ou das Molucas, fôra por ordem do Governador em cumprimento do serviço militar a que por cinco annos se obrigara Camões na matricula em Lisboa. *

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C) A Armada do Sul ou das Molucas. (1556) Combate dado conira os Piratas chinezes (1557)-Em Macau (1558) Naufragio (1559) O Injusto mando.

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A India estava esgotada nos seus recursos pela expoliação administrativa do funccionalismo desdobrado capciosamente em uma matricula, em que os mortos ainda figuravam vencendo ordenados em que se escoava a fazenda real. Procuraram-se novos campos de

1

Esta data é admittida pelo Dr. Xavier da Cunha, na monumental edição polyglota das Endechas a Barbora, ou a Pretidão de amor. (Lisboa)

Escreve o viajante hollandez Linschott (p. 5): Elles (os soldados) não podem partir das Indias sem baixa dada pelo Vice-Rei, sendo obrigados a servir lá o rei no espaço de cinco annos. »

*

exploração; Diogo do Couto definiu em quatro palavras a corrente de inesgotavel riqueza a que todos se arrojavam: « tenho ouvido dizer, que na China se gasta a maior parte da gente da India.» E n'este mesmo dialogo do Soldado pratico, pinta em impressionante quadro: a China com as mais partes do Sul descobertas, não se sabe em tudo o que ora é descoberto na redondeza do mundo, terras tão ricas, nem abundantes de todalas cousas; porque o que em todo o mundo se póde achar por partes, alli se achará junto,...: ouro, prata, cobre, estanho, ferro, todos os outros metaes, almiscar, ambar, benjoim, calumba, aguila, sandalo, cravo, pimenta mais que na India, perolas, camphora; e mais seda sáe cada anno da China do que se achará de linho alcaneve n'este reino, muito fertil e abastado de toda a sorte de mantimentos, e de todas as fructas, que se podem nomear das nossas, e outras da terra; as mulheres muito alvas e formosas, vestem de seda tecida com rosas de ouro, e de prata...; é terra em que se vive sem confissão, nem restituição, nem ha n'ella Santa Inquisição para se saber como cada um vive.» (Op. cit., 97.) A perspectiva dos fabulosos lucros levava os soldados a fugirem ao serviço das Armadas, e creavam se os emprestimos para a China, com que medrava a onzena dos chatins, militares que adiantavam dinheiro aos que se achavam favorecidos com uma viagem de mercê para a China. Rodrigues da Silveira, nas Memorias de um Soldado da India, descrevendo a situação dos soldados mal pagos, fixa esta corrente: «Esta gente, tanto que se

desengana do que passa, procura por todos os meios e vias possiveis buscar algum remedio para a vida. Porque ser soldado tão longe da patria, comer, vestir e calçar á sua custa, alugar casa de sua bolça, comprar armas com seu dinheiro, e estar prestes para se embarcar na Armada, sem mais que uma só paga cada anno, ás vezes nenhuma, parece cousa impossivel a quem não fôr commenda. dor de Malta.

<< Pelo que uns se lançam para Bengala, outros para a China, Malaca, Pegu, Diu, Ormuz, Cinde, Cambaia: e muitos se põem por soldados em navios de chatins aonde posto que o soldo não seja tão honrado como o de El rei, é mais proveitoso por ser melhor pago.» (p. 185.)

«

N'esta phase da florescencia do commercio da China, era difficil arranjar gente para as Armadas do Norte e do Sul. Francisco Barreto tinha de ser severo para poder acudir aos dois Estreitos e a Malaca. Diogo do Couto aponta o caso: hoje, muito ao contrario, não ha quem os faça embarcar; passeiam por Gôa todo o inverno; e tanto que entra o verão, e que se querem fazer Armadas, sómem-se logo; e tanto que sabem que deram á vela, tornam logo a apparecer, sem haver Viso Rey, que lhes pergunte por isso; e quando se as Armadas recolhem, se sabem que hão de mandar soccôrro a Malaca, Maluco e Ceilão, alguns das Armadas deixam-se ficar pelas Fortalezas de Canará, e os de Gôa se escondem pelos covís ou porões; e assim de maravilha succede cousa bôa; não ha quem peleje, nem quem soccorra as Fortalezas; e depois de parti

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