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ou mais algumas poesias do mesmo genero, pois em escriptor contemporaneo se encontram citadas com o titulo de Cancioneiro 1, titulo que parece referir-se a uma mais copiosa collecção de que estas poesias faziam parte. Esta composição, na qual o Poeta se mostra tão atribulado pelos trabalhos padecidos e compungido das culpas passadas, tem sido e é de uma difficil interpretação: procuraremos dar-lhe aquella que nos parece mais rasoavel cingindo-nos ao texto. O Poeta, depois de uma grande calamidade e perigo, acha-se em um combate de amor profano, que não pode desarreigar do coração, e do divino, e n'esta occasião não captivo como os hebreus, mas arrojado pelas ondas em terra estranha, faz o protesto de uma reticencia na sua lyra, d'estas muito costumadas, e que os poetas usam fazer e cumprir tanto, como as promessas dos jogadores, reservando-se sómente a tirar d'ellas cantos divinos. O vate que agora era excitado e inspirado de um estylo biblico, acabava de escapar de beber a morte nas ondas do mar; é n'estas occasiões que lembra o Céu, ao incredulo porque duvida, e ao crente porque a esperança sempre consoladora lhe adoça as bordas do vaso negro da morte; e assim como os braços se apegam á tábua que boia sobre as aguas, a alma por crença, medo, ou duvida procura segurar-se å ancora da religião. Os religiosos que andavam nas armadas para soccorro espiritual dos marinheiros e soldados, ou os que em terra missionavam, exerciam com o maior zêlo, energia e devoção christã o ministerio do sacerdocio; e se mais de um louro cresceu regado com o sangue do soldado portuguez nas nossas conquistas, tambem a palma que sobe ao céu floriu regada com o sangue de mais de um virtuoso sacerdote, em toda a parte onde arvorámos a cruz, e á sua sombra a civilisação. Aproveitavam elles estas occasiões, nas quaes a persuasiva cala mais no coração e este se acha mais disposto para abraçar a verdade, em missionarem e confessarem, e era debaixo d'esta influencia que o Poeta escreveu estas redondilhas, nas quaes do modo o mais orthodoxo faz o elogio da confissão auricular, desejando ver-se sempre lustrado das suas culpas como unico e verdadeiro meio com as graças d'este Sacramento. Debaixo da allegoria de Babylonia e Sião, significando esta a terra e aquella o céu, joga este poema feito sem duvida ou antes ou depois de uma confissão, quando teve logar este perigoso episodio da sua vida.

Os versos d'esta paraphrase, em os quaes o Poeta exprime o desejo que a pena d'este desterro seja insculpida em pedra ou no ferro duro,

1 Vide nola 43.*

tem feito insistir a alguns, não attendendo a que o naufragio foi na volta da China, que a ida do Poeta para aquelles sitios fôra em resultado de um degredo. Mas se aqui a palavra desterro não é usada em sentido figurado, significando a terra em contraposição á terra bemaventurada que exprime o céu, no primeiro verso d'esta redondilha, como supponho, parece-me que a estes versos se não pode dar n'este caso outra interpretação a não ser, que ao Poeta constou por ordem transmittida, ou outra qualquer via, que ao chegar a Goa se lhe destinava um degredo, postoque a esta determinação me parece que devia preceder sentença da auctoridade judicial d'esta cidade. O que me faz vacillar e inclinar, postoque muito pouco, a esta opinião, é ver que o Poeta larga aqui o thema do psalmo, e se soccorre do livro de Job (Cap. XIX) manifestando os desejos d'aquelle paciente varão, quando se dirige aos amigos que o affligiam injustamente, e enxergar-se n'esta comparação uma paridade com a pouca lealdade que experimentou da parte de homens que falsamente se diziam seus amigos.

A intensidade e dureza do combate que o Poeta experimentava n'esta situação critica da vida revela-se n'estas celebres redondilhas; na II o Poeta faz o protesto da violencia com que deixa por Deus os seus amo

res:

Mas deixar nesta espessura

O canto da mocidade,

Não cuide a gente futura,
Que será obra da idade
O que he força da ventura.
Que idade, tempo e espanto,
De ver quão ligeiro passe,
Nunca em mi poderam tanto,
Que, posto que deixo o canto,
A causa delle deixasse.

Na redondilha que se segue, na qual ratifica a constancia dos seus amores, nos dá a entender quão violento era o sacrificio, pois, como se deprehende de uns versos do poeta Boscan n'ella inseridos, reputava ainda viva aquella que era já um frio cadaver.

Mas em tristezas e nojos,
Em gosto e contentamento,
Por sol, por neve, por vento,

Tendrè presente a los ojos.

Por quien muero tan contento.

Nas redondilhas XXII, xxш e XXIV se manifesta toda a violencia da luta do coração; e quantas vezes temos visto estes combates irem morrer entre os muros de um mosteiro, estas chammas absorvidas por mais intenso fogo, o do amor divino! A luta do corpo e do espirito é ardua, é violenta, é difficultosa, mas o triumpho é sublime! Amava o Poeta, sim, o mais intensamente, porém o que era aquella humana figura que o captivava, senão um raio da formosura divina? que eram aquelles olhos e a luz que vibravam, senão sombra baça d'aquella idéa que em Deus é mais perfeita? que eram esses olhos senão sophistas que o guiavam por maus caminhos, e obrigavam a cantar em versos de amor divino, cantares de amor profano? mas ouçâmos antes o Poeta :

Não he logo a saudade.

Das terras, onde nasceo

A carne, mas he do ceo,
Daquella santa cidade,
Donde esta alma descendeo.

E aquella humana figura,

Que cá me pode alterar,

Nam he quem se ha de buscar,
He raio da formosura,

Que só se deve amar.

Que os olhos e a luz, que atea

O fogo que cá sujeita,

Nam do sol, mas da candea,

He sombra daquella idéa

Que em Deus está mais perfeita.

E os que cá me captivaram,

São poderosos affeitos

Que os corações tem sujeitos;
Sophistas que me ensinaram
Maos caminhos por direitos.

Destes o mando tyrano
Me obriga com desatino,

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Ao chegar a Goa, pelos fins do governo de D. Francisco Barreto, foi logo recolhido a uma prisão. Por este tempo era já fallecida D. Catharina de Athaide, como já vimos, e foi então que, estando encarcerado, escreveu o lindo e enternecido soneto LXXVI, inspirado talvez por algum passarinho que, inconsolavel pela morte da companheira, esvoaçando veiu pousar nas grades do carcere, poesia em que o Poeta lhe inveja a sorte desejando acompanha-lo para se consolarem mutuamente. Ditosa ave a quem se a natureza lhe roubou o seu primeiro bem, dá-lhe o ser triste a seu contentamento, mas não como a elle

Que para respirar lhe falta o vento,

E para tudo em fim lhe falta o mundo.

XI

Nos principios de Setembro de 1558 chegou de Lisboa, para substituir a D. Francisco Barreto, o Vice-Rei D. Constantino de Bragança, irmão do Duque D. Theodosio, que o Poeta em Portugal tinha celebrado em seus versos. Facil lhe foi então repellir as injustas accusações que The forjavam, e com a protecção do Vice-Rei foi posto em liberdade. Achava-se agora mais alentado de esperanças com o favor do Vice-Rei e com a amizade de D. Alvaro da Silveira, filho do Conde da Sortelha, que vinha despachado com a Capitania de Ormuz, sobre o qual, segundo vemos em uma composição (inedita), se firmavam os seus castellos de vento 1.

Libertado da prisão, é natural que acompanhasse o Vice-Rei á expedição de Damão, e de lá o seu amigo D. Alvaro da Silveira novamente

1 Vide nota 44.a

á costa da Arabia, e se o Poeta não ia no navio de Alvaro Pires de Tavora, que com a força da tempestade veiu tomar Goa em Maio, foi talvez ser testemunha da triste derrota e desastrosa morte do amigo.

No ultimo tempo do governo de D. Constantino se achava o Poeta em Goa, e foi por esta occasião que lhe dirigiu aquella epistola, que na ordem das suas oitavas é a 11, na qual imita no principio a epistola de Horacio dirigida a Augusto:

Cum tot sustineas et tanta negotia solus,

e consola o Vice-Rei pela injustiça com que era tratado pelo povo

Costumado á largueza e soltura

Do pesado governo que acabava.

Se o Poeta lyrico antigo estranhava ao povo romano o preferir a antiga legislação das XII tábuas dos Decemviros á legislação de Augusto, a censura que o Poeta portuguez fazia ao povo de Goa era de uma natureza mais grave, pois com maligna perversidade ousou calumniar o Vice-Rei de concussionario. O Poeta lhe diz n'esta epistola, que em o louvar se afasta do vulgo, que levou a audacia a vir mesmo debaixo das janellas do seu palacio parodiar-lhe o romance antigo

em

Mira Nero de Tarpeia
A Roma como ardia,

Mira Nero da janella

La nave como se hazia,

e isto porque defronte do palacio, por ordem sua e despeza, se construia uma nau para regressar ao reino. Eram porém sem o menor fundamento estas murmurações (seguimos a Diogo do Couto), porque nem no Vice-Rei concorriam partes que o podessem equiparar aquelle monstro, nem a nau foi feita com o dinheiro do Estado, que o Vice-Rei sempre zelou; mas com a economia dos seus ordenados e com emprestimos de amigos, que depois pagou. Se não havia porém rasão para remorder na honra de D. Constantino, muito menos a havia para a censura que o Poeta faz ao governo de D. Francisco Barreto; e pede a justiça que se diga que falla como apaixonado, pois foi este um dos

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