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hoje não existe ou pelo menos não apparece, teriamos a descripção official de toda a sua vida militar na Asia.

E de todos sem duvida este commentador o mais interessante para se consultar, não só porque traz o que os outros já escreveram, mas pelo assiduo trabalho a que se deu em colligir noticias, tanto escriptas como tradicionaes, de pessoas que conheceram o Poeta: deve-se comtudo examinar com summa cautela, principalmente quando se enthusiasma pelo seu mestre, ou se agasta contra aquelles que reputou seus zoilos e inimigos.

Poucos annos depois, a instancias do Conde da Vidigueira, Embaixador portuguez na côrte de París, verteu novamente para latim os Lusiadas o celebre Fr. Francisco de Santo Agostinho de Macedo, e lhe addicionou uma biographia em portuguez, que não acrescenta novidade ao anteriormente já escripto.

Do mesmo descuido e negligencia devem ser taxados os editores e traductores coevos, ou que escreveram proximamente á morte do Poeta. O Bispo de Targa Fr. Thomé de Faria, da Ordem dos Carmelitas, que verteu os Lusiadas para latim, e publicou a traducção no anno de 1622, limitou-se a juntar ao seu trabalho algumas breves notas historicas e mythologicas; podendo comtudo ter-nos dado interessantes particularidades, porquanto tinha a provecta idade

de um militar antigo da India, tirada por um seu descendente no reinado de El-Rei D. Pedro II. A do nosso Poeta à fizemos ali procurar, de que se encarregou o Sr. Antonio Julio Taveira, que serviu na magistratura n'aquella possessão portugueza, e hoje fallecido, mas sem resultado. No Archivo da Torre do Tombo existe uma remessa feita do de Goa, mas começa no tempo dos Filippes: tenho idéa (cito de memoria) de ter lido em uma memoria escripta pelo Secretario que foi d'aquelle estado, Claudio Lagrange, que anteriormente a esta remessa tinha sido feita outra de papeis mais antigos, mas que havia a tradição que o navio em que vinham naufragára; seria bom o examinar se estarão em algum canto em alguma administração publica, e procurar com mais certeza que fim tiveram estes interessantes documentos para a historia da Asia. A sua perda nos faz sentir mais a dos Commentarios tambem perdidos de Diogo do Couto, pois sendo o fundador e Guarda-mór d'este Archivo, e tendo compulsado os seus documentos, nos daria noticia circumstanciada d'aquelles que se referiam á vida do Poeta seu amigo e companheiro, e de cujo Poema era commentador.

O padre Fr. Francisco de Santo Agostinho de Macedo escreveu uma resumida biographia do Poeta em portuguez: pertenceu este manuscripto ao nosso bem conhecido escriptor Antonio Ribeiro dos Santos, e hoje se conserva na Bibliotheca Publica d'esta cidade. Não offerece novidade nem aponta factos novos.

de 82 annos quando publicou a sua traducção, e fôra contemporaneo e testemunha por muitos annos das acções do nosso Poeta, pois tinha nascido no anno de 1542.

Os dois traductores das versões castelhanas, que saíram ambas no anno da morte de Camões (1580), seguiram mesmo caminho.

A perda de alguns Commentarios e criticas da mesma epocha e do seculo XVII se torna muito sensivel, pois dariam mais luminosa claridade a alguns factos obscuros da vida. de Camões. Entre estes se podem contar os Commentarios de Diogo do Couto, que ainda no fim do seculo xvii se conservavam em Evora, os do Prior do Santo Milagre de Santarem, Luiz da Silva de Brito, os de Manuel do Valle de Moura, e as criticas de D. Francisco Rolin de Moura, Senhor da Azambuja, e de Manuel Pires de Almeida. Mas é mais que tudo para deplorar a falta da collecção das Cartas do nosso Poeta, que juntamente com as de Fernão Cardoso se conservavam na escolhida livraria do Conde de Vimieiro. que o fatal terremoto de 1755 reduziu a cinzas, collecção preciosa, e que julgo que, como as do Tasso, versavam sobre a analyse do seu Poema; parecendo incrivel que a Academia de Historia Portugueza se não apressasse a publicar pela imprensa um tão importante descobrimento litterario. Tive algumas esperanças de poder alcançar algumas d'estas Cartas, por me dizer o Sr. Alexandre Herculano que na Bibliotheca Real da Ajuda existia uma collecção de Cartas d'este Fernão Cardoso; porém, indo ali, e tendo elle tido a bondade de me franquear o manuscripto, não pude encontrar nenhuma das do nosso Poeta, vindo aliás algumas de contemporaneos, como de Diogo Sigeo, pae das duas celebres senhoras Luiza e Angela Sigea. Manuel Severim de Faria as viu tambem, mas provavelmente depois da publicação da sua biographia, porque se as conhecêra antes, se teria aproveitado d'este auxilio para o seu trabalho. E possivel que tirasse copia d'ellas, que se conservaria na collecção dos seus manuscriptos; porém,. como parte d'esta collecção se perdeu, poucas esperanças se podem conceber de virem a encontrar-se. Parece que estas Cartas não foram desconhecidas ao antigo traductor francez

Duperron de Casterà 5, pois parece alludir a ellas no Prefacio da sua traducção.

O editor da edição vulgarmente chamada jesuitica, de 1584, é o primeiro a dar-nos a noticia do naufragio nas poucas e ridiculas notas de que é acompanhada esta mais ridicula edição.

A primeira das Poesias varias ou Rythmas, coordenada pelo Licenciado Fernão Rodrigues Lobo Surrupita (1595), só toca de passagem no melhoramento da sepultura do Poeta, ordenado por D. Gonçalo Coutinho. Estas são pouco mais ou menos as noticias que mais se avisinham da epocha em que elle viveu: passemos agora aos biographos do nosso tempo.

O Sr. Bispo de Vizeu D. Francisco Alexandre Lobo, despertado pela publicação da nitida edição do Morgado de Mátheus D. José Maria de Sousa Botelho (1817), escreveu uma memoria critica, que se encontra na collecção das Memorias da Academia Real das Sciencias de Lisboa, sobre a vida e escriptos do Poeta, a qual leva a palma a quanto sobre o mesmo assumpto se tinha escripto, pela perspicacia das conjecturas, polido do estylo e boa critica; porém o seu trabalho

5 Mr. Duperron de Casterà no prefacio da sua traducção se exprime por esta fórma, referindo-se á allegoria do Poema: Peut-être me reprochera-t-on qu'en voulant denouer le fil de l'allégorie qui regne dans la Lusiade j'ai donné au Camöens des idées qu'il n'a jamais eues; j'avoue que c'est là le défaut ordinaire des commentateurs; mais je puis dire hardiment, que je n'ai pas même couru risque d'y tomber; le Poëte nous a devoilé l'esprit de ses fictions en jettant dans son ouvrage et surtout à la fin du neuvième chant, plusieurs traits de lumière, qui ne laissent aucun doute sur cet article; d'ailleurs il s'en est encore expliqué plus clairement dans quelques unes de ses lettres; ainsi l'on n'a qu'à le suivre pas à pas, et l'on verra que je ne lui prête rien..

6 É a primeira parte onde achámos noticia do naufragio do Poeta, por esta fórma em uma nota a estancia 80.a do canto vII. Isto dizia porque o Camões andando na India, começando a fortuna a favorece-lo, e tendo algum fato já de seu perdeo-se na viagem que fez pera a China, d'onde elle compoz aquelle Cancioneiro que diz:

Sobre os rios que vão por Babylonia, etc.

O editor escrevia quatro annos depois da morte do Poeta.

7 Estevão Lopes, editor das Rymas de 1595, é o primeiro que falla na trasladação dos ossos do Poeta. Assim se exprime dirigindo-se a D. Gonçalo Coutinho, a quem a edição é dedicada: Mas como não hei de exalçar até o céu a magnifica e mui heroica obra que V. M.ce fez em dar sepultura honrada aos ossos d'este veneravel varão, que pobre e plebeiamente jaziam no mosteiro de Santa Anna?»

não é completo nem o podia ser, porque faltavam os documentos necessarios onde superabundava a erudição e merecimento do auctor. Com toda a diligencia- diz o nosso illustre biographo não posso porém lisonjear-me nem me lisonjeio de offerecer aqui uma relação completa e clara em todos os pontos, e desembaraçada de qualquer duvida. Onde guardam silencio os documentos, ou se envolvem em sombra impenetravel, o que póde referir a historia se não quer degenerar em romance?

Este prelado tem sido com bastante injustiça taxado de pouco affeiçoado a Camões; quem ler com reflexão a sua Memoria se convencerá do contrario. O que tem dado logar a esta opinião, abraçada por alguns, tem sido o elle defender ao Governador Francisco Barreto. Se isto é assim, confessåmo-nos desde já co-réus no mesmo crime; mas n'isto temos por companheiro o proprio Camões, que no fim da vida, de quem se queixava era dos falsos amigos que o tinham mexericado com o Governador. Mais adiante mostraremos como elle foi favoravel ao Poeta no principio do seu governo, e qual era a probidade do seu caracter e genio pouco vinga

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8 Custa ver que a reputação de um fidalgo como Francisco Barreto, de tanta consideração, que na Africa e na India militou com tanto credito e se mostrou sempre tão liberal, affavel e cavalheiro, se apresente tão injustamente denegrida. Diogo do Couto nos dá d'elle o retrato mais lisonjeiro: Vêmo-lo temerario nos perigos mais do que convinha á sua posição; liberal, camarada officioso, e sempre propenso a perdoar as offensas recebidas. Tendo tido desavenças no tempo do seu antecessor, o Vice-Rei D. Pedro Mascarenhas, com Martim Affonso de Miranda, ao ponto de os apartarem, logoque tomou posse do governo foi de todos os fidalgos aquelle de quem se mostrou mais amigo, porque não se cuidasse que pelos desgostos passados lhe ficára má vontade. Uma anecdota conta o mesmo historiador, que mais claramente dá a conhecer a bondade do seu coração: Tendo um fidalgo por nome Antonio Pereira Brandão, que El-Rei mandára degradado por toda a vida para Africa, obtido de El-Rei, por intervenção de Francisco Barreto, a commutação da pena para o acompanhar á Mina, e tendo-o logo deixado por Capitão da fortaleza de Moçambique, este, em paga de tantos beneficios, lhe urdiu uma traição forjando uns capitulos falsos que mandára para o reino. Francisco Barreto, indignado de tão feia ingratidão, tendo acabado de ouvir missa, disse aos fidalgos que o acompanhavam que se ficassem, e levando só comsigo a Antonio Pereira Brandão, com tenção, ao que se suppõe, de vir a vias de facto, porque o viram concertar um punhal que levava á cinta, The mostrou os capitulos que houvera á mão e que elle mandava para o reino: ao vê-los, aquelle ingrato fidalgo se lhe lançou aos pés, abraçando-o pelas pernas, rebentou em lagrimas pedindo-lhe misericordia com grandes soluços que ouviram os que estavam mais afastados. O Governador (diz Diogo do Couto), que tinha um coração muito mavioso e as entranhas cheias de brandura, voltou as costas e foi andando para a fortaleza com os olhos arrasados em lagrimas,

tivo, á vista de factos da sua vida, e pelo testemunho de um dos amigos mais intimos do nosso Poeta, o filho do Conde da Sortelha D. Alvaro da Silveira.

como se elle fosse o culpado, e tão affrontado que parecia vinha de algum grande trabalho. É verdade que o chronista da India no seu Soldado Pratico, fallando d'este Governador, diz que d'elle dicant Paduani; pois vejamos como um amigo o mais intimo do nosso Poeta, D. Alvaro da Silveira, e por isso nada suspeito, descreve as excellentes qualidades d'este excellente Governador, em uma carta que escreve a El-Rei, datada de 24 de dezembro de 1555.

O viso rei D. Pedro levou nosso Senhor para si bespora de Sam João, governou nove mezes, e pois he morto nam ha hi que fallar em cousas do seu tempo senão que nosso Senhor the dê o paraiso e mais descanço do que elle leixou a esta terra. Çocedeo francisco barreto que prazerá a nosso Senhor que o ajudará no serviço de Vossa alteza como elle tein os desejos e os poem por obra, e pois V. A. tão bem escolheo quem era para o seo serviço, Sirva se delle e lembre lhe que huma das cousas que distruhe esta terra são novidades, e homens novos nella; huma só cousa direi dele porque as outras velas ha V. A. em sua fazenda e serviço, mas crea V. A. que esta terra e povo sentirá muito em quanto elle servir V. A. como elle até qui tem servido serem governados nem mandados por outrem porque nunca homem tão amado foi do povo nem desejado.

Esta carta é escripta a 24 de dezembro de 1555, e em 10 de janeiro do anno seguinte apparece uma carta do Governador Francisco Barreto para El-Rei, recommendando este fidalgo para o cargo de Capitão-mór do mar, porém de uma maneira tão desinteressada, que faz o elogio do Governador, pois começa por dizer que o cargo é escusado, porquanto elle Governador tem 40 annos de idade e disposição para o escusar; porem que no caso de S. A. ser servido de crear este cargo, ninguem é mais apto por todos os motivos para o servir que D. Alvaro da Silveira. Desejoso de conhecer a fundo o caracter de Francisco Barreto, li uma carta de um Christovão Lopes de Sá para o Secretario Pedro de Alcaçova Carneiro, seu parente, na qual se queixa do pouco caso que o Governador fizera de uma carta de recommendação sua, e que Francisco Barreto governava a India com proveito dos seus creados, e de o não attender tendo elle servido muitos annos, e de attender outros com menos annos de serviço: no entanto, para o remediar, diz que recebêra do seu Secretario alguns pardaus. Quem não vê n'esta carta a sordidez de quem a escreve, e o elogio o mais frisante do Governador, que despreza a valiosa recommendação de Pedro de Alcaçova para com um parente proximo, por isso que talvez o reputa pouco digno das mercês reaes? O certo é que os grandes serviços d'este antagonista de Francisco Barreto não apparecem narrados por Diogo do Couto. O mesmo Camões, no fim da vida, não se queixava do Governador, mas dos falsos amigos que o tinham mexericado com elle, como nos diz.o seu amigo e commentador Manuel Correia: «Os mayores amigos que tinha o mexericarão com o Viso Rei da India, como elle me disse contando os enfadamentos que na India tivera, que foi causa de o prenderem e enfadarem. Se a isto juntarmos que o Poeta, depois da sua volta para o reino, conviveu com intimidade com D. Francisca de Aragão, com quem se carteava, sobrinha de Francisco Barreto, que ficou sua herdeira e dos seus serviços, vemos que o resentimento pessoal de Camões estava de todo extincto; mas se o não estava, perdoe-me o nosso illustre Poeta: Amicus Plato sed magis amica veritas. Não serei eu por certo que queime o incenso da lisonja perante um idolo, embora tão sympathico, e da veneração de nós todos os portuguezes, quando o seu fumo possa escurecer a fama de um homem que tambem, filho de Portugal, foi um bom servidor do estado. Demorámo-nos sobre este assumpto mais do que parecerá a alguns conveniente, porque não reputâmos inutil gastar algumas palavras quando estas podem servir para reivindicar a memoria de um nome illustre.

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