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possuamos toda a copia do poema para conhecermos as emendas e alterações que se fizeram por parte de Camões quando deu á estampa os seus Lusiadas. Algumas vezes, aindaque poucas, foi necessario desviar da orthographia do manuscripto que⚫ não é fixa, porquanto repete os mesmos vocabulos por differente fórma, e outros são escriptos por maneira que se afastam do uso, e pareceriam ao leitor erros typographicos como coraçois, dipois, etc.; esta liberdade poucas vezes tomada a não tomariamos, se o manuscripto fosse autographo, ou de epocha mais remota em que fosse necessario conservar as genuinas feições do original. Cumpre tambem fazer uma advertencia, que o manuscripto, trazendo sem indicação as obras mesmo conhecidas de Camões, esta lhe é posta por letra mais moderna, mas por pessoa versada, e que parece ter examinado outros manuscriptos, porquanto fez o mesmo serviço indigitando de quem sejam as obras dos outros auctores que ali se transcrevem.

O padre Thomas José de Aquino nas suas duas edições das obras de Camões de 1779 e 1782, não consultou o autographo dos commentarios de Manuel de Faria e Sousa aos Lusiadas; como estes se achavam impressos não curou do manuscripto, e assim não foi por elle examinado. Não digo isto como uma censura ao editor, o qual sem duvida fez valiosos serviços á litteratura patria, tornando vulgares pela imprensa algumas composições do nosso Poeta de que o publico não tinha conhecimento, dando uma edição mais completa das suas obras; digo-o porém para advertir que no volume por elle desprezado fui ainda descobrir differentes poesias, redondilhas, esparças, voltas, etc. e com esta acquisição enriquecemos o nosso peculio.

Se o Ariosto e Tasso encontraram interpretes que o deram a conhecer na lingua portugueza, de Petrarcha não me consta de traducção conhecida, se exceptuarmos alguns sonetos traduzidos por Camões, pois comquanto tres portuguezes se quizessem dar ao trabalho de o verterem, o primeiro, João Pinto Delgado, que escrevia no começo do seculo xvi, deixou a sua traducção manuscripta, a qual pelo metro em que era elaborada (oitavas) differente do do original, não indica dever ter subido merecimento. Os outros dois se serviram da lingua castelhana; o primeiro Salusque Lusitano que traduziu a primeira parte que se imprimiu em Veneza no anno de 1567, e Henrique Garcez.

traductor tambem dos Lusiadas, que passou para aquella lingua os sonetos e canções do poeta italiano em Madrid no anno de 1591. Possuindo uma traducção portugueza verso a verso dos Triumphos de Petrarcha, julgámos que seria offerta agradavel aos nossos compatriotas se lhes dessemos pela primeira vez na nossa lingua o poeta italiano traduzido, e que esta dobraria em valor sendo elaborada pelo seu emulo e admirador, o nosso Camões.

A necessidade de irmos colhendo o pano a este prologo nos ́tolhe de apresentarmos aqui as multiplicadas`rasões pelas quaes se comprova pertencer irrevocavelmente ao nosso Poela este trabalho litterario; reservamos demonstra-lo com evidencia nas notas quando tratarmos d'elle. Parece que a traducção fôra feita para uso da amante, por uma referencia que se encontra notada; porém julgo que a não chegou a ver. E quantas vezes os livros de auctor alheio não têem sido interpretes de uma paixão, terceiros para com damas, e indicadores de sentimentos occultos que a boca não ousava revelar? A margem de um manuscripto de Virgilio do uso de Petrarcha, servia de registo dos seus affectos e de obituario da sua Laura; na margem do livro do Poeta latino, meias apagadas pelas lagrimas do amante inconsolavel, se liam estas dolorosas palavras: «Laura que resplandecia com tantas virtudes, que eu tantas vezes celebrei em os meus versos, appareceu a estes meus olhos pela primeira vez aos 6 de abril em Avinhão, na igreja de Santa Clara. Era então mancebo; em a mesma cidade, em o mesmo dia e á mesma hora do anno de 1348 a estrella de Laura deixou de raiar sobre a terra. Esta mulher tão bella, tão casta foi enterrada no mesmo dia após de vesperas na igreja dos Franciscanos de Avinhão. Subiu ao céu que a havia emprestado á terra. Para me recordar a lembrança melancolica de uma perda tão pungente, consignei n'este livro esta ementa, com uma alegria misturada de amargura. A morte de Laura me dá a certeza que pouco tempo me resta para viver; depois que se rompeu aquelle elo da minha existencia, espero com a ajuda de Deus poder renunciar sem fadiga a um mundo onde encontrei tantas decepções, e onde a esperança é tão vã como caduca».

Os amores de Camões foram agitados como a sua vida; como os de Petrarcha foram revelados nos mais bellos sons que a

lingua presta á musica da poesia, nos mais ternos e acalorados affectos com que o coração sabe sentir. Entre as contrariedades com que foram assaltados, mais de uma vez perturbou-lhes o remanso o ciume; esta dor tartarea, como lhe chama o mesmo Camões, este sentimento cem vezes injusto e violento por uma que tem rasão, mas que por uma antithese incomprehensivel se traduz em amor. Assi na traducção manuscripta um signal indicativo aponta com o dedo para um logar do commentario (de Gesualdo) a este verso:

Del re sempre di lagrimi digiuno.

que Camões traduz assim

Do cruel rei de choro sempre gegum. (Ita.)

O logar que o Poeta portuguez escolheu para deixar consignada em epilogo as phases infelizes e tormentos de um amor desgraçado a que a morte decepou a ultima esperança, é este: «Que nunca é farto de chorar, porque o apetito é tal e tão forçoso que emquanto se não alcança o desejado objecto de contino nos afflige, e depois de alcançado o temor de o perder e o ciume da dama nos consume; assim que sempre o amor é occasião de lagrimas e de dor». Parece que quiz que ficasse no livro palpitante a antiga ferida, e que ao enxergar essa cohorte de mortos que o poeta italiano faz desfilar, a morte, tambem porventura fresca da sua Natercia, o acordou para a representação do sonho da vida passada, que em poucas palavras, como um epitaphio na mansão dos mortos, quiz deixar apontada em uma pagina do seu poeta valido, como este o havia feito na do de Mantua.

Outro manuscripto que possuimos do seculo xvu nos forneceu algumas poesias ineditas, e o poder completar algumas já impressas que não estão inteiras, e variantes, tornando-se entre estas notavel uma á elegia 1. Este manuscripto, ou antes manuscriptos, porque são dois encadernados na mesma capa, e que infelizmente não estão completos por lhe faltar o principio e o fim, e deverem por isso ter-se perdido algumas poesias de Camões, comprehende, a primeira parte, poesias de differentes auctores contemporaneos, Bernardes, Caminha, D. Manuel de Portugal, Jorge Fernandes, vulgo o frade da rainha (D. Catharina); e a segunda parte, que é em letra differente, pertence exclusiva

mente a Francisco de Sá de Miranda, de quem traz algumas poesias ineditas.

De alguns outros manuscriptos quasi todos do seculo XVII extrahimos como agulha em palheiro uma ou outra poesia, sem que de algumas possamos denunciar-lhe de uma maneira positiva a origem. Quem está habituado a manusear estas collecções com o simples titulo de Miscellaneas ou Papeis varios, verdadeira feira da ladra da litteratura, onde muitas vezes ao lado de um autographo de subido valor, está a mais trivial sandice, é que póde avaliar a difficuldade de baptisar com um titulo estas, pela maior parte, informes collecções.

Na edição de 1595 vem uma poesia que começa:

Vae o bem fugindo, etc.

Estas endechas traz Faria e Sousa manuscriptas e se acham impressas nas obras de Bernardes; deve-se porém advertir, que parte das que vem impressas em nome de Camões, isto é, o principio não vem nas obras do poeta do Lima. Aindaque me queria abster de tocar na questão do plagiato de algumas obras de Camões feito por este poeta, comtudo, á vista d'esta pequena poesia e de outras que a acompanham no MS. de Faria e Sousa, não poderei deixar de dizer, postoque de passagem, alguma cousa sobre esta materia. As poesias de Bernardes publicacam-se em 1596, um anno posteriormente á publicação das Rimas de Camões; na verdade não sei que motivo teria Bernardes para não dar por inteiro uma composição sua, o que de alguma maneira póde dar logar a suspeitar de a ter encontrado mutilada em alguma copia de que se serviu; o facto é que esta poesia appareceu primeiro e em vida de Bernardes na edição primeira (1595) das Rimas de Camões, publicada por Surrupita, postoque depois foi eliminada nas outras edições. Um argumento porém que reputo de maior força e de mais grave peso contra Bernardes é

o soneto

Horas breves de meu contentamento, etc.

um dos
que se suppõem usurpados. Este soneto, differentissimo
nos tercetos em ambos os poetas, se acha glosado por dois con-
temporaneos de Camões, Fernão Alvares do Oriente e Balthazar
Estaço; o primeiro, alem de enthusiasta de Camões, seu amigo

B

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e camarada na India, e tanto uma como outra glosa é feita sobre a versão como vem nas obras de Camões. Inclino-me pois a suspeitar que algumas poesias de Camões foram usurpadas e introduzidas nas obras de Diogo Bernardes; porém estou persuadido que n'este numero não entram as cglogas, pelo menos parte, salvo se Bernardes as apropriou a differentes circumstancias e. logares, o que podia comtudo acontecer, como a quem se aproveitou da canção x11 de Camões, a qual vimos alterada ou antes estropiada em duas versões manuscriptas e uma d'ellas applicada á villa da Lousã. Que o poeta do Lima era justa ou injustamente reputado cumplice de plagiato das obras do nosso Epico é evidente, não só pelas já referidas endechas, mas pelas oitavas a Santa Ursula, do que o mesmo Bernardes se doe no soneto dedicatorio dirigido á infanta D. Maria.

Eu fiz (como já disse o Mantuano)
Os versos dessa virgem esposada,
Que foi com onze, mil martyrisada:
A honra me roubou hum vil engano

Se foi ainda roubada tão aceita.

ce

Porém as peças roubadas, isto é, se o foram, pois onde não ha plena prova, mas só vehemente indicio, assenta mal sentença decisoria, não diminuem a gloria de Camões, nem augmentam a de Bernardes, poeta suavissimo no estylo, mas muito áquem da sublimidade poetica do seu emulo. Que as poesias do nosso Poeta corriam algumas anonymas e que d'ellas se aproveitavam os outros, nós o temos não só do testemunho de Faria e Sousa, mas por propria confissão do mesmo Camões, o qual na carta 11 remettendo algumas poesias, assim escreve á pessoa a quem é dirigida: «Esta vae com a candea na mão morrer nas de V. M. e se dahi passar seja em cinza, porque não quero que do meu pouco comam muitos. E se todavia quizer metter mãos na escudella, mande-lhe lavar o nome e valha sem cunhos». D'esta declaração se colhe que as súas poesias davam, ou interesse pecuniario ou de reputação, e assim pede á pessoa a quem escreve conserve o anonymo, com a idéa talvez de publicar depois pela imprensa o cancioneiro das suas poesias. A demasiada franqueza de Camões em confiar a amigos as suas composições, deixando d'ellas tirar copia, dava logar a estas usurpações; quem era tão pouco

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